“Isso é um país? Onde fica?”
Confesso que essas foram as perguntas que me passaram pela cabeça quando vi uma chamada para estudantes de doutorado que quisessem participar de uma expedição nas Ilhas Salomão. A viagem é parte do Programa Extreme Environments (ambientes extremos), da Escola de Mídia Criativa, da City University of Hong Kong. Esse programa seleciona estudantes de graduação em arte e tecnologia e os leva para ambientes extremos, onde pesquisam e coletam material para trabalhos artísticos em novas mídias, com temas ecológicos. Após uma busca no Google, vi que Ilhas Salomão é um país da Oceania, composto por diversas ilhas, com uma natureza exuberante e que está entre os primeiros países que já estão sofrendo consequências graves do aquecimento global. Os dois doutorandos selecionados como assistentes do professor não receberiam dinheiro, mas teriam todas as despesas pagas. Conhecer de graça um país novo, ir em lugares lindos e onde turistas normalmente não vão e poder fazer um documentário sobre a experiência? Não precisei nem de dois segundos pra decidir tentar. Claro que fiquei super empolgada e contatei o professor, fiz entrevista e, com toda minha experiência de viagens , inclusive acompanhando grupos no exterior, fui selecionada para acompanhar a expedição. Oba!

Antes de contar a aventura, é necessário um contexto geral:
O país possui mais de 900 ilhas, sendo 6 principais. Em cada ilha vivem mais de uma comunidade, com cultura e até língua própria. 80% da população economicamente ativa está envolvida em atividades de subsistência. Portanto, é um país essencialmente agrário. Algumas ilhas são tão remotas, que não possuem sinal de celular. Onde ficamos não havia televisão ou ar acondicionado, nem estradas, muito menos internet.

O país possui paisagens variadas: vulcões, cachoeiras, grutas, ilhas formadas por atóis e florestas tropicais. O turismo ainda é incipiente, mas além do custo acessível e lugares belos, a possibilidade de atividades turísticas é diversa: praias, snorkeling, mergulho, surfe, pesca, trecking e observação da vida marinha como golfinhos e tartarugas. Há ainda a oportunidade de visitar lugares históricos ligados à segunda guerra mundial, porque devido à sua posição estratégica e por ser à época território inglês, o país foi invadido pelos japoneses e foi palco de batalhas. É possível até nadar sobre navios naufragados.

O país está no círculo de fogo do pacífico, região vulnerável a abalos sísmicos. Na nossa primeira noite lá, eu estava deitada e quase dormindo, quando senti que a cama estava balançando. Fiquei na dúvida se eu estava tonta (mesmo sem beber- quem sabe não era um ataque de labirintite? haha), mas logo percebi que era um tremor de terra. Meu primeiro terremoto teve magnitude de 4.7, o que foi tranquilo e só um pouquinho preocupante, já que estávamos perto do mar e havia risco de tsunami.

O calor era grande e vivíamos cercados de muitos mosquitos e insetos. Uma das ilhas em que ficamos geralmente não recebe turistas, portanto a infra estrutura era muito básica. Como não havia água doce, dependíamos da água da chuva para atividades como tomar banho. Como choveu pouco quando estávamos lá, tomei só 1 banho em 4 dias (banho de mar não conta).

A expedição foi uma experiência de não ter controle, de estar nas mãos da natureza literalmente: as atividades do dia eram definidas de acordo com o clima; nossos horários, pelo nível da maré e etc. Tivemos dois voos cancelados por causa da chuva. Nosso voo de Hong Kong chegava e saía da capital Honiara. Para chegar às ilhas em que trabalharíamos, precisávamos pegar um aviãozinho de 19 lugares para uma outra ilha e, de lá, pegar um barco por duas horas. O avião era tão pequeno que pesaram a gente junto com a bagagem. Literalmente, cada um teve que subir na balança com suas malas. Nessa ilha não há aeroporto, mas uma pista de pouso na grama. Quando chove muito, a pista fica alagada e o avião não pode pousar. Na ida, tivemos que ficar um dia a mais em Honiara, por este motivo. Para avisar o pessoal que nos esperava, foi gerada uma cadeia com 4 meios de comunicação, que incluiu rádio e um homem em um barco. Na volta, ficamos isolados nessa ilha, a princípio sem comida ou onde dormir. O avião só chegou no dia seguinte, perdemos nosso voo para Hong Kong e tivemos que esperar dois dias em Honiara para conseguir outro.

Apesar desses aspectos, a proximidade com a natureza proporcionou algumas experiências incríveis:

O céu era tão estrelado como eu nem sabia que era possível. Não é como quando vamos para a roça ou cidades do interior, em que vemos mais estrelas que na cidade. Lá praticamente não sobra um espaço sem um pontinho brilhante no céu.

Ao cair da noite, fomos em barco para perto de uma ilhazinha e vimos milhares de pássaros revoando em círculos. Ninguém sabe ao certo porque fazem isso, mas é um espetáculo para os olhos.

Quem já fez snorkeling (nadar com aquele tubo para respirar e óculos com lente de aumento) em águas cristalinas, sabe como é fantástico poder admirar a diversidade de vida, cores e formas que se encontram nos oceanos! Vimos peixes estranhos, moluscos gigantes, corais, vários tubarões pequenos e um de mais 2 metros passou pertinho de mim.

Moluscos gigantes e coloridos são apenas algumas das maravilhas marinhas possíveis de ser vistas por quem faz snorkeling nas Ilhas Salomão

Observamos o trabalho da ONG Nature Conservancy, que busca conservar as tartarugas marinhas, em risco de extinção. Essa ONG foi convidada pelas próprias comunidades, que observaram que as tartarugas estavam desaparecendo, devido à caça ilegal e às mudanças climáticas. O trabalho envolve treinamento de pessoas locais que assumem o papel de patrulhar a ilha, proteger os ninhos dos predadores e ajudar para que as tartarugas recém nascidas cheguem ao mar em segurança. Ver as centenas de tartaruguinhas, de cerca de 5 centímetros, saírem do ninho e irem pro mar é sem dúvida uma experiência emocionante. Infelizmente, só 1 em cada 1000 sobreviverá até a idade reprodutiva (cerca de 30 anos), quando voltarão ao lugar em que nasceram para desovar.

Eu vivi uma aventura em particular. Para poder monitorar as tartarugas, os patrulheiros fazem o que eles chamam de rodeio: vão com o barco para alto mar tentar avistar tartarugas adultas. Quando avistam uma, pulam do barco em movimento tentando pegá-las. Não é fácil pois elas nadam muito velozmente. Os patrulheiros vão pulando um a um até conseguir. Em terra, eles as medem, colocam etiqueta e anotam características das tartarugas, para assim rastrear e monitorá-las. Logo após, as soltam e elas voltam para o mar. Quando estávamos lá, eles nos convidaram para participar do rodeio. Parte do grupo havia ido nos dias anteriores, e eu sabia que dois rapazes haviam sido convidados para tentar. Eles pularam 3 vezes cada e só um conseguiu na terceira tentativa. Assim, eu tinha decidido que iria tentar, mesmo sendo mínima a chance de pegar uma, mas queria a aventura. Após ver como faziam eu disse aos patrulheiros que queria tentar. Eles não me deram muita atenção, provavelmente porque na cultura deles essa atividade é feita pelos homens (veja aqui). Quando estávamos perseguindo uma das tartarugas, vários dos patrulheiros já haviam tentando pular mais de uma vez, mas ela escapava e eles voltavam para o barco de mãos vazias. Eu tive que insistir, fiquei em pé quando 3 dos patrulheiros estavam no mar, após ter pulado tentando pegá-la, e só sobrou um no barco. Eu disse firme “me diga quando e eu pulo”. O barco desacelerou e ele gritou: “agora!”. Eu pulei e vi a tartaruga bem abaixo de mim. Nadei uns 3 metros de profundidade e quase não acreditei quando consegui pegá-la! Eu havia visto que eles a pegam por debaixo das patas que correspondem aos nossos braços. Ao pegá-la, ela se debateu um pouco e me arranhou o braço. Quando eu a segurei firme, já estava cansada e quase sem ar, aí o instinto me fez virá-la para cima e o empuxo fez o resto, levando nós duas para a superfície. Para o espanto do grupo, eu submergi com a tartaruga nos braços. Não sei se a tartaruga já estava cansada pela perseguição ou se foi sorte de principiante, só sei que fiquei muito feliz. O vídeo abaixo mostra esses momentos.

Essa foi a tartaruga marinha que peguei para etiquetar e depois devolver ao mar

Vimos de perto também o impacto do aumento do nível do oceano, causado pelo aquecimento global. Visitamos uma das ilhas que já estão totalmente submersas. Um rapaz local de 25 anos, nos relatou que, quando ele era criança, sua família ia passar o final de semana na pequena ilha de Kaleh, onde haviam casas e vegetação. Hoje a ilha está submersa. Na maré baixa, andamos sobre a ilha com a água no joelho. Na maré alta, fica mais de dois metros submersa e os barcos até podem passar sobre ela sem encalhar. Só restaram umas poucas árvores. Aterrorizante ver que em cerca de 15 anos uma ilha ficou totalmente coberta pela água!

Essa parte mais clara na água é a areia da ilha submersa devido ao aquecimento global

Além disso, conviver com as pessoas locais foi toda uma experiência antropológica. Aprendi sobre o estilo de vida totalmente diferente do nosso, o cotidiano delas, como fazem as coisas sem os recursos que conhecemos… Algo particularmente interessante foi que eu fiz uma oficina de fotografia com as mulheres locais. Os homens que estavam nos guiando e dirigindo os barcos, haviam demonstraram interesse em aprender algumas técnicas de fotografia. Nosso equipamento era muito bom e marcamos um momento para ensiná-los. Na hora, somente os homens se sentaram à mesa e as mulheres ficaram em cadeiras um pouco distante. Eu disse a elas: podem vir também, não é só para homens. Elas pegaram as cadeiras e se sentaram mais perto, mas ainda não à mesa com os homens. Ainda ocupavam o papel de espectadoras. Eu então acabei fazendo a oficina só para elas, enquanto outros alunos trabalhavam com os homens. Jamais vou esquecer a alegria delas em manipular as câmeras. Fiz oficina com umas senhoras da outra ilha também e elas se sentiram tão empoderadas e capazes, que contagiaram até as duas estudantes que me ajudaram na oficina e que ficaram profundamente tocadas. Para minha alegria, algumas das fotos que uma das senhoras tirou ficaram tão boas que foram incluídas no catálogo da exposição.

Oficina de fotografia com mulheres locais

A exposição dos trabalhos ocorreu em abril em Hong Kong. O grupo contou com estudantes da China, Alemanha, Índia, Hungria e Austrália, que possuem conhecimento em novas mídias e que desenvolveram projetos que representam as mudanças que estão ocorrendo no meio-ambiente. Eu participei da exposição com uma série de vídeos com estórias curtas sobre o lugar. Estão agora no Youtube. Mesmo com legendas em inglês, espero que possam dar um pulinho para ver as imagens, clicando aqui.

Grupo de estudantes que participaram do Programa Extreme Environments nas Ilhas Salomão